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DIÁRIO MAGALY

Diário criado na quarentena sobre três gerações vivendo na mesma casa e convivendo com o Alzheimer.

"Estar aqui é sentir a presença etérea da essência separada da matéria. Conviver com fins de ciclo. Acompanhar o momento de passagem entre mundos de pertinho. O tempo nessa casa tem outro significado. Minha avó e meu cachorro já caminham pra um outro momento, um outro lugar. Parece quase que eles estão absorvendo as últimas informações dessa dimensão pra seguirem seus caminhos.Enquanto escrevia esse texto sentada na minha cama, minha avó tava sentada na poltrona do lado. Ela me olhava quase que sem piscar, com um olhar distante, em momentos parecia que ela nem tava ali, mas sempre que cruzava o meu olhar com o dela, ela me abria um sorriso. Ia e vinha de cochilos com um sorriso bem sutil no rosto.A comunicação é de outra forma por aqui. O silêncio dela conta coisas que ela nunca falou. Em um dos cochilos da tarde ela agarrou a minha mão e dormiu num sono curto e leve, mas não me soltou nem por um instante. Em outro momento, num outro cochilo, pouco antes de pegar no sono ela estendeu a mão pra mim e me segurou forte fazendo carinho. Isso, pra quem passou a vida sem dar muitas demonstrações de afeto, é um grito."

"Num dos nossos banhos de sol na varanda do meu quarto, minha avó – do nada – me perguntou o que eu achava da vida. Logo eu, a pessoa que vive cada momento da vida como sendo uma cena de filme com trilha sonora. Já dá pra imaginar que o papo foi looooonnnnnge. Mas dentre muitas coisas que ela falou, uma em especial mexeu bastante comigo, que perguntei o que, pra ela, fazia a vida valer a pena e ela me respondeu “ser compreendida”. Continuamos conversando por um tempo até que ficamos em silêncio. Ela tava na poltrona e eu sentada no chão, encostada na porta da varanda com o sol batendo no rosto. Depois de um tempo que eu tava em silêncio e de olhos fechados ela falou “sua boca é muito bonita” e depois que eu agradeci, completou com “seu cabelo e o seu rosto também são bonitos”, perguntei o que mais e ela respondeu “o coração”. Fiquei pensando muito muito sobre esse contexto todo de comentários. Sobre como ela fala com frequência do meu coração, sobre como ela vibra numa outra energia quando tá sentada na poltrona do meu quarto e como, cada vez mais, ela quer ficar vindo aqui. Sobre como, naturalmente, ela tem soltado informações tão sutis, mas tão simbólicas. Sobre como, talvez, ela tenha passado por coisas e precisado de uma compreensão que não teve ao longo da vida. “Ser compreendida” me pegou. Eu não exagero quando falo que essas conversas existenciais não aconteciam e que agora parece que ela tem realmente aberto e acessado lugares que ficaram oprimidos dentro dela. O que me faz pensar no quanto de coisa a gente deixa passar por uma questão de não se atentar ao que o outro tá passando em silêncio. Eu realmente espero que a minha avó esteja absorvendo e vivendo uma cura, mesmo que inconsciente, de feridas antigas."

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ANTOLOGIA TORII | ABRINDO PORTAIS

Textos publicados em coletânea que reúne 43 escritoras da TORII | escola de escrita criativa

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fiz desse site um reflexo de mim, reflexo que mostra uma parte de tantas outras a descobrir
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